Por que obras públicas não atraem a maioria das empresas de Engenharia, Arquitetura e Construtoras?
Os órgãos públicos no Brasil, se agrupados, constituem o maior comprador de produtos e serviços que o mercado registra. No entanto, este agrupamento representa em média dez por cento de tudo o que mercado transaciona, ou seja, o consumo demandado pelos órgãos públicos, não é determinante na economia a ponto de dizer que dite o mercado, o que demonstra a pujança da economia nacional privada, ante ao consumo de serviços e produtos demandados pelos órgãos públicos.
Também há outro fenômeno a ser considerado na medida em que o país possui mais de vinte bilhões de empresas (CNPJs ativos), porém apenas uma parcela muito reduzida participa, ou se interessa em atender esta demanda de mercado. Os portais de transparências de tribunais de contas estaduais e união (TCEs, TCU e TCMSP e TCMRJ); além de controladorias gerais quando somados dão conta de não passam de um por cento o grupo das empresas privadas que transacionam com órgãos públicos. Veja os números no quadro abaixo, que indicam o percentual de empresas privadas que transacionam com órgãos públicos.
Quantidade Global de CNPJs no Brasil | 20.000.000.000 (20 bilhões) |
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Empresas que participam de Licitações CGU / TCU | 350.000 (350 mil) |
TCEs / TCM-SP / TCM-RJ | 750.000 (750 mil) |
Demais Registros de Portais de Transparência | 500.000 (500 mil) |
Percentual de Empresas que transacionam com órgãos Públicos | < 1% |
Segundo o portal da transparência da Controladoria Geral da União – CGU (https://portaldatransparencia.gov.br/licitacoes), o número de empresas que transacionam com o governo, ainda que no recorte da esfera federal que demonstra um comportamento geral, tem se mostrado constante e regular nos últimos dez anos, exceção apenas para o período da pandemia, quando o consumo de produtos médicos deu um salto sazonal. Analisando apenas a parcela de obras, nota-se que este número tem se mantido mais regular ainda. Veja no quadro abaixo:
Ano | Contratos | Valor Global Contratado | Parcela ref. Obras |
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2023 | 20.268 | R$ 61,56 Bilhões | R$ 5,37 Bilhões |
2022 | 19.834 | R$ 76,59 Bilhões | R$ 7,42 Bilhões |
2021 | 19.157 | R$ 51,35 Bilhões | R$ 5,12 Bilhões |
2020 | 131.740 | R$ 90,67 Bilhões (Pandemia) | R$ 5,81 Bilhões |
Isolando o nicho das construtoras, empresas de engenharias, arquitetura e correlatos, notam-se que representam proporcionalmente menos ainda da fatia global de produtos e serviços, tendo em vista as exigências documentais e cifras envolvidas, por serviços de médio e longo período de entrega.
Também é um alerta que acaba sendo sopesado, o resultado divulgado de alta taxa de insucesso contratual deste nicho, divulgado ano após ano, pelos tribunais de contas estaduais, que indicam que a maioria dos contratos sofrem judicialização, sobretudo devido às questões orçamentárias.
Veja no mapa abaixo, um recorte apenas do tribunal de contas do estado de São Paulo, que responde por aproximadamente onze por cento dos municípios nacionais, no entanto tem representado um terço do PIB e arrecadação nacional, para demonstrar cenário similar nas demais unidades da federação, no quesito de prejuízo causado por obras paralisadas ou atrasadas associadas aos respectivos valores envolvidos nos contratos.
Portal da Transparência do TCE SP - Tribunal de Contas São Paulo – Ano 2023 | (https://paineldeobras.tce.sp.gov.br/pentaho/api/repos/:public:Obra:painel_obras.wcdf/generatedContent?userid=anony&password=zero) |
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Total de Recursos Auditados no Ano | R$ 430 Bilhões |
Abrangência: 644 municípios (exceto capital) | Parcela estimativa referente a Obras: 11% - R$ 47 bilhões |
Valor ref Obras Paralisadas ou Atrasadas – 644 empresas | R$ 32 Bilhões |
Taxa de Insucesso – sob o ponto de vista financeiro | 68% |
O portal WikiobraS tem acompanhado e ouvido os depoimentos das empresas dos ramos de engenharia, arquitetura e construção civil, de maneira a catalogar os principais motivos que os fazem desistir de participaram de transações com instituições públicas. Para alguns estes fenômenos pode indicar “oportunidades” para outros pode indicar “risco alto” em negócios de alto valor envolvido, seja como for, seguem as principais menções que as espantam destas oportunidades.
Os preços são estabelecidos por tabelas públicas
Os preços referenciais para as contratações dos órgãos públicos são estabelecidos pelos próprios órgãos públicos, o que fere a mais natural lei da oferta e procura, que garantem aos fornecedores de livre mercado praticarem os seus preços de acordo com suas virtudes ou falta delas.
No justificado propósito de garantir lisura em contratações, os órgãos públicos são obrigados a se apoiarem em tabelas de preços homologadas por lei, seja, federal, estadual ou municipal, onde os únicos responsáveis pela manutenção e publicação destas tabelas, são também empresas públicas, o que torna tanto os compradores (órgãos públicos) como também os fornecedores (empresas) vinculados e reféns de uma referência amplamente contestada pelas partes, por não representarem o espelho do mercado nacional.
A analogia mais recorrente entre as empresas auscultadas, é aquela que relata o cenário semelhante ao comprador que vai ao supermercado e ao constatar que o preço do quilo do arroz é dez reais, corre para informar ao dono do supermercado que segundo seu levantamento próprio, o preço correto e que está disposto a pagar é de oito reais. Neste cenário a reação do dono do supermercado não é outra senão, recomendar ao comprador que saia de seu estabelecimento e percorra no mercado até encontrar um incauto que ofereça seu preço máximo na visão dele.
A maioria das empresas sequer reconhece as tabelas públicas e as que a reconhecem não se estimulam a transacionar naqueles termos, sendo, portanto, uma das razões mencionadas para a não participação em certames públicos.
Qualidade dos Orçamentos e a desvinculação de seus autores
Especificamente na área de obras, os preços invariavelmente são estabelecidos por extensos e necessários estudos orçamentários, que demandam projetos executivos, memoriais de especificações técnicas, planilhas orçamentárias que se utilizam de bases públicas, entre diversos outros documentos que embasam o empreendimento a ser contratado.
A legislação nacional estabelece que a atividade da elaboração destes estudos orçamentários, seja afeta e restrita somente aos profissionais do sistema CONFEA/CREA ou CAUBR/UF, ou seja, realizada apenas por engenheiros e/ou arquitetos. A forma na qual o profissional se vincula aos estudos orçamentários é com a emissão do respectivo documento relacionado, que é chamado de anotação de responsabilidade técnica – ART (para engenheiros) ou registro de responsabilidade técnica – RRT (para arquitetos), onde consigna a abrangência de suas responsabilidades. Tal documento é frequentemente suprimido ou esquecido.
Não obstante haver a responsabilidade identificada, o mercado ainda assim age com reservas ante a autoria dos estudos, tendo em vista dois fatores preponderantes: 1) O profissional orçamentista nem sempre tem como demonstrar expertise e maturidade na elaboração destes estudos, assim como se espera da experiência de um médico, piloto de avião ou calculista estrutural, onde a vivência e tempo de carreira são fundamentais na ciência envolvida. 2) O profissional orçamentista, nunca é o envolvido na contratação de maneira a ter sua pessoa incomodada, para o caso de orçamento impreciso, arcando como parte em eventual judicialização da transação, em que pese ser a totalidade das lides causadas por razões orçamentárias, ou seja, o dinheiro acaba durante o caminho.
Pregões para Contratação
Por ocasião da aprovação dos regramentos para compras públicas, a nova lei de licitações ( Lei nº. 14.133/2021)permitiu que a modalidade de pregão ou disputa pelo menor preço, fosse também adotada para obras, o que fez com que agravasse ainda mais a falta de apetite pelo ramo em fornecer para a esfera pública.
É inconcebível aos olhos dos bons adeptos da obra bem-feita, que após longos e bem elaborados estudos orçamentários, com projetos, memoriais, planilhas e seus processos muito bem definidos e custeados, possa haver razão para explicar expressivos descontos financeiros ofertados, que justifiquem a manutenção e qualidade dos mesmos termos para os quais fora o empreendimento projetado, levando, portanto, a uma das razões mencionadas para evitar participações.
Argumentam as empresas que a prática de pregão e compra pelo menor preço quando aplicados para itens e mercadorias já produzidas e disponíveis em estoques, sob pronta entrega, são facilmente determinantes e propícios para descontos e negociações comerciais, ao sabor de seus fornecedores, o que não acontece com obras, que são entregáveis que inexistem e até existirem demandam tempo e uma sorte de elementos para além das vontades das partes envolvidas, e portanto, jamais deveriam ser objetos de pregões ou compra pelo menor preço.
Preços Fixos e Irreajustáveis
Obras são peças que abrangem empreendimentos e investimentos de médio e longo prazo. Quase que invariavelmente os contratos públicos têm o compromisso de blindar verbas já empenhadas em passado, e não preveem correções de custos. Não obstante a este fator, o tempo de estudos orçamentários até as publicações de editais, tempo de julgamentos e análises, contratação, início e a própria execução do escopo, demanda em tempo que nem sempre os fornecedores estão a fim de bancar.
Na iniciativa privada é simples e fácil estabelecer critérios de correções que garantam tranquilidade e estabilidade bilateral, ou ainda que se apraze em contratos as taxas financeiras por intervalos temporais. Nas obras públicas a empresas são obrigadas a manter preços fixos e irreajustáveis que por vezes pode avançar por até dois anos, entre os estudos orçamentários, até o primeiro ano de execução do objeto, em que pesa alguns contratos permitirem reajuste após doze meses, em termos muito restritivos.
Medições Demoradas
As contratações públicas preveem a utilização de medições, que são as peças de aferição da evolução do objeto, a ponto de servirem de meios para a remuneração do executor da obra. Na iniciativa privada, as medições podem ser quinzenais ou em lapsos nem sempre regulares, mas de forma ágil o suficiente para garantir a boa execução da obra no prazo.
No entanto, na esfera pública é comum as empresas reclamarem da frequência e morosidade de medições, que ainda que previstas mensais, acabam por retardar ante ação de analistas, trâmites internos de órgãos, pedidos de esclarecimentos e refazimentos, atualizações documentais e mais uma série de percalços que não contribuem em nada para a agilidade da liberação do principal combustível que conduz a obra: o dinheiro.
Por vezes as empresas até mencionam irregularidades e oportunismos dos interlocutores públicos, que sem provas cabais, relatam existência de pequenas propinas e pedágios para a liberação de medições. Tais cenários, também contribuem para o desestímulo na adesão a este ambiente de negócios.
Estatísticas de Contratos Insolventes ou Judicializados
As empresas que pretendem participar de transações com órgãos públicos, são desde cedo submetidas as consultas às listas das empresas inidôneas, as quais estão proibidas de licitar e, portanto, de contratarem com a esfera pública. Tais listas são ofertadas publicamente em diversos portais e esferas.
Por outro lado, as empresas constatam também que a quantidade de empresas que compõe a lista de inidôneos é crescente nos últimos anos. Fazem também, comparações do sucesso ou não, durante execução dos contratos firmados. Ao constatarem que as taxas de insucesso são altas, conforme divulgações dos tribunais de contas que fiscalizam as execuções, então acabam por desestimularem seus ingressos nessa esfera de negócios.
Falta de Projetos Executivos
Na iniciativa privada é mandatório possuir vasta documentação técnica e orçamentária, para melhor entender o empreendimento, seja um hospital, um shopping center, um edifício, uma indústria, um loteamento ou projeto que demande estudo de viabilidade. Tais elementos vão muito além do projeto básico aprovado em prefeituras, e são imprescindíveis para investidores, construtores, mantenedores e todos os demais participantes no negócio envolvido: são os projetos executivos e todo o arcabouço técnico-comercial associado.
Na esfera pública acaba por ser recorrente a contratação de obras e empreendimentos que dispõem apenas de projeto básico, com breve estudo orçamentário impreciso e apócrifo, o que acaba por oferecer vários riscos ao negócio, sobretudo em contratos onde os itens omissos correm por conta e risco da empresa executora, que assume desde início o comprometimento da entrega nos termos a que se destinam os empreendimentos.
As condições são frequentemente chamadas de caninas e ostensivas, que mais denotam um propósito de destruir o fornecedor, do que caminhar lado a lado, respeitando as expectativas bilaterais, tendo como propósito em comum a feitura do objeto contratado e não o maquiavélico propósito de esperar que a empresa cubra e banque a necessidade social de entregar um bem público, sob sua conta e risco.
Estigma de Irregularidades
Ainda que sem provas cabais e apenas na percepção e experiências de relacionamentos narrados, as empresas se retraem de negócios na esfera pública ao mencionarem irregularidades em transações, que passam por fraudes, favorecimentos a indicados, superfaturamentos, desvios e pedágios, cujos termos são comumente utilizados pelas empresas que declinam de participações em licitações públicas.
Muitos relatam que apesar de já terem vivido diversas experiências com irregularidades e ingressarem com recursos fazendo os apontamentos, na esmagadora maioria dos casos, o órgão licitante jamais defere e segue contratando a irregularidade, sob argumento princípio do interesse público aliado ao choro de perdedores.
As irregularidades podem representar um estigma para empresas, mas são argumentos frequentemente mencionados nas razões pelas quais não despertam interesse em transacionarem com a esfera pública.
Tempo de Tramitação até a efetiva contratação
Na iniciativa privada o tempo entre a oferta de uma proposta, análise e tomada de decisão do comprador é estatisticamente curto, segundo os relatos das empresas com as quais o portal WikiobraS interage.
No entanto os relatos apontam para um período desalentador quando se trata da esfera pública, já que esta precisa respeitar certos ritos legais e em consequência disso acaba por ficar refém deste regramento. O rito de contratação, envolve a especificação do que precisa comprar, passando por publicação de edital de maneira a garantir a publicidade e abrangência do ato, também de garantir a multiplicidade de participações, a imparcialidade nas restrições, a impessoalidade nas escolhas além de uma série de outros princípios afetos às contratações públicas.
Durante o certame licitatório até a adjudicação do vencedor, também há de considerar o período de recursos, debates, esclarecimentos, julgamentos de razões e contrarrazões de participantes, que tomam tempo que vai além do controle e domínio das partes.
Após a adjudicação há que se considerar o tempo de contratação e mobilização do vencedor até o efetivo início de obras e realização do empreendimento. Todo este trajeto também não é muito palatável para as empresas, pois bem sabem que os preços e cenários podem sofrer sérios impactos neste ínterim, razão pela qual também é item mencionado nas razões que as fazem declinar de buscar negócios na esfera pública.